Wagner Mota Pereira / Crédito: Demian Duarte |
O CONTATO
- Deus, quero te conhecer. Quero te ver como os discípulos te viram. Se for preciso, estou disposto a passar por um sacrifício. Quero ser provado e aprovado.
Quando disse tudo isso, não imaginava o que estava por vir. Sete, no máximo 15 dias após este pedido, o acidente aconteceu. Era domingo, 13 de setembro e eu reformava o piso do meu barracão junto com um pedreiro – morava na Rua 63, com minha esposa e enteada de 4 anos, no fundo do lote da minha sogra. Por volta das 7 horas, o Roberto apareceu.
- Achei uma peça de chumbo nas ruínas do antigo Instituto Goiano de Radioterapia. Vamos lá ver.
- Tô trabalhando, Roberto.
O Roberto, vestido como de costume – short, camiseta, chinela Havaiana e cabelo penteado impecavelmente para trás, com o auxílio de um gel - ficou me “alugando” até a hora do almoço. Aí, falou uma frase que pareceu um tiro na minha cabeça:
- Vivo te fazendo favores e você não me retribui - resmungou. Vamos, Wagner. Já passei na casa do Levy, do ‘Borracha’ e do ‘Dão’ e eles não puderam ir - insistiu Roberto.
Fiquei sem jeito; resolvi acompanhá-lo. Antes, porém, chamei o Roberto pra almoçar. Acho que minha esposa tinha feito arroz, feijão, frango e salada. Terminada a refeição, partimos rumo ao IGR, um prédio abandonado, em ruínas, que ficava na avenida Tocantins com a Paranaíba. Eu estava de botina escura, calça jeans e com uma camisa curta, acho que azul clarinha. Foram duas “viagens” ao local: a primeira pra eu conhecer a peça; depois voltamos com um carrinho de mão.
O objeto inteiro – um aparelho utilizado para tratamento de câncer, feito de chumbo e metal – pesava mais de 500 quilos. Tentamos colocar a peça dentro do carrinho, virando ele de lado. Não deu certo; um dos pés do carrinho chegou a quebrar. O Roberto insistiu, levantou uma parte do cilindro e conseguiu puxar um pedaço menor, de aproximadamente 128 quilos. Nesse pedaço, não sabíamos, estava a ‘marmita’ do césio’. Levamos o material para a Rua 57, na casa da mãe do Roberto.
No quintal, debaixo de uma mangueira, começamos a desmontar o objeto. Tentamos tirar o bronze, ou metal me parece, uma coisa de 0,5 centímetros de largura. Como a gente via que não saía, deixamos pra lá. Vamos vender assim mesmo.
Me despedi do Roberto e fui pra casa descansar.
*****
O relógio marcava 2 horas da madrugada quando a costureira e dona de casa Marli da Costa Freire Ferreira, 27, acordou o marido para ir trabalhar.
- Adelson, está na hora.
O motorista da Rápido Araguaia levantou, vestiu o uniforme – uma calça de um roxo bem vivo e uma camisa meia manga bege - e tomou um gole de café. Despediu da mulher e, acompanhado do seu “Fuscão Preto”, um fila filhote, andou cerca de um quilômetro até chegar no ponto em que o ônibus da empresa passava para pegar os funcionários.
Rumrumrumrumrumrumrumrum.
Adelson entrou no veículo. Fuscão Preto, presente do irmão Ivo, voltou pra casa do dono, no Setor Jardim Veneza, em Aparecida de Goiânia. O animal teria outra missão por volta das 6h30: levar o filho de Adelson, Odesson Filho, 7, à escola. Já o “beterraba”, alcunha colocada por populares nos motoristas dos coletivos por causa da cor do uniforme, começava mais uma jornada diária de dez horas de labuta.
Às 4h30, Adelson saiu da garagem da Rápido Araguaia, no Bairro Santo Antônio, rumo ao setor Cidade Livre, ponto de partida do seu itinerário. Ele trabalhava na linha Setor Pedro Ludovico – Cidade Livre, via BR-153. Tempo de descanso, de conversa jogada fora com os amigos eram poucos. Mas quando parava no Terminal Isidória, por volta das 6h30, não desperdiçava a oportunidade de comer o pão de queijo vendido nas barraquinhas montadas no local. E assim também o fez naquela terça-feira, 22 de setembro de 1987, um dia típico quente goiano, com temperatura média de 29,9ºC.
Ao final do expediente, por volta das 16 horas, Adelson decidiu visitar o irmão Devair Alves Ferreira, o Di, que morava na Rua 26-A, Setor Aeroporto. O jovem motorista, o caçula dos cinco filhos de dona Maria Badia Motta, tinha recebido um acerto da empresa há cerca de dois dias. Queria pagar 900 cruzados que devia ao irmão pela compra de dois vitrôs.
Ele passou pelo ferro-velho de Devair – a casa ficava no fundo do lote – e soube da novidade:
- Olha, mano, eu comprei esse material, isto é muito bonito - Di mostrou uma peça de inox, no formato de uma marmita, que estava atrás da porta da sala.
- Desse negócio sai uma luz azul muito linda de noite. Quero fazer uma pedra de anel com o pozinho que está dentro da peça, emendou.
Adelson pegou alguns fragmentos – quantidade menor do que um grão de arroz - e espalhou na palma da mão esquerda com o dedo indicador da direita. O material esfarinhou.
- Não, Devair, isso não nem consistência. Joga isso fora.
O irmão caçula esfregou as mãos, como que batendo palma, para limpá-las.
- Olha, Adelson, por causa disso aí eu tenho de levantar às vezes de madrugada da minha cama para cobrir com alguma toalha ou alguma coisa, senão a gente não consegue dormir, de tão claro que fica a casa – comentou Maria Gabriela, 37, esposa de Devair.
A cunhada de Adelson, assim como o irmão, estava adoentada havia alguns dias. Vômito, náuseas, mal estar. Os dentes de Devair estavam moles e a pele mais escurecida. A sogra de Di, também Maria Gabriela, havia chegado de Inhumas, município a 49 quilômetros de Goiânia, no dia 21 de setembro para cuidar da filha e do genro.
- É por isso que eu não gosto de refrigerante; só de cerveja. Me fizeram tomar uma porcaria de coca-cola no sábado, quando a Maria fez uma feijoada, e agora estou passando mal – reclamou Devair.
A prosa continuou por cerca de 40 minutos. Adelson tomou um café preto. O vizinho Edson Fabiano, que trabalhava como lanterneiro, chegava da oficina mecânica e deu um pulo na casa de Devair. Enquanto isso, Israel e Admilson, funcionários do ferro-velho, desmontavam um peça de chumbo de 98 quilos – 30 quilos a menos do que Wagner calculara - com uma talhadeira. O material havia sido comprado pelo patrão no dia 18, sexta-feira, por 1.800 cruzados. Acoplado a este cilindro veio o objeto de inox que emitia uma luz azul do seu interior, quando no escuro.
Em entrevista a um jornalista sueco, alguns anos após o acidente, Devair relembrou o dia da transação:
O meu contato foi no dia 18 de setembro de 1987. Por volta das 10 horas da manhã, apareceu um rapaz, que eu não conhecia, no ferro-velho. Ele me ofereceu uma peça de chumbo que devia pesar entre 80 e 100 quilos. Eu disse que precisava de documentos por causa da grande quantidade do material. Ele concordou e disse que, à tarde, levava os documentos. Perto das 17 horas, apareceu e pediu um carrinho de mão emprestado e que um funcionário meu o ajudasse a carregar o objeto. Pesei o chumbo e deu 98 quilos. A peça vinha com uma cápsula de inox, que parecia um queijo com um buraquinho na lateral. Por ela não paguei nada; não tinha valor; ficou desprezada lá no depósito.
Desprezada por poucas horas. À noite, por volta das 23 horas daquela sexta-feira, 18 de setembro, quando Devair voltava de um bar, passou pelo depósito e desligou a luz. Viu um foco jogado no muro, percebeu que era o artigo recém adquirido e o levou para dentro de casa, acomodando-o num canto da sala, perto da TV e do cortinado do vitrô.
- É um inferno, Adelson. Já falei pro Devair colocar isso pra fora, mas ele não quer – resmungou Maria no dia 22, terça-feira, quando da visita do cunhado.
Adelson decidiu que era hora de ir. Queria ainda visitar o irmão Ivo, que morava a poucos metros dali, no Setor Norte Ferroviário.
*****
Era fim de tarde e dona Lourdes já havia cumprido com quase todas as obrigações domésticas. Café da manhã, almoço, roupa lavada à mão, limpeza da casa. O marido Ivo havia viajado e ela cuidava dos filhos e sobrinhos – seis crianças ao todo - junto com a irmã Luiza Odet Mota dos Santos.
- Olá, Lourdes O Ivo tá aí?
Era o cunhado Adelson.
- Ele viajou. Mas volta rápido.
No barracão de paredes azuis moravam Ivo e Lourdes com os filhos Leide, 6, Lucimar, 14, e Lucélia, 16. No fundo do lote, um depósito de material reciclável e pequenos casebres, construídos para acomodar os funcionários do casal e a irmã de dona Lourdes, que havia chegado no início do ano junto com o marido Kardec e os quatro rebentos: Fábio Júnior, 7; Paulo Fernando, 6; Cristiane, 4; e Cássia, 1.
- Pois é, Lourdes. Acabo de sair da casa do Devair e o mano e a Maria estão muito mal, doente, com vômito, diarréia – explicou Adelson.
- Ah, é? Vou avisar o Ivo quando ele chegar.
Eles se despediram. Na quinta-feira, 24, dona Lourdes terminou de ajudar o marido no depósito, como fazia rotineiramente. Estava em frente à pia preparando o jantar quando Ivo entrou na cozinha, tomou um pouco de café e sentou no chão, próximo à porta do fundo, para fumar um Hollywood.
- Nossa, Ivo. Você tem que visitar o Devair. Tem uma semana que ele passa mal e você não vai ver ele...
Ivo deu a última tragada e deixou a cozinha. Após terminar de cortar as verduras, Lourdes preparou a roupa do marido para ele usar após o banho - era sempre assim; ela deixava tudo arrumadinho em cima da cama. Separou a cueca, o pijama, o chinelo.
- Ivo, está pronto. Pode ir banhar.
- Ivo!
Onde está esse homem?
Procurou na cozinha, no depósito, no quintal. Nada. Deve ter saído por aí. A dona de casa finalizou o jantar e fez um ovo cozido para a caçula comer com caldo de feijão. Ah, Leide! Ela nunca foi muito boa pra comer. A mais velha, Lucélia, estava na casa de uma amiga; não dormiria em casa. Lucimar brincava no quintal com um colega. Uma hora se passou.
- Lucimar, Leide, vem ver o que o pai trouxe da casa do tio Devair.
- Como é que eles estão, Ivo? – perguntou Lourdes da cozinha.
- Tá mal. O cabelo do Devair tá caindo, ele não está sentindo gosto de nada, e parece que tá mais escuro, azulado.
- Mas o que foi isso?
- Estão achando que foi por causa de uma coca-cola que tomaram no sábado quando a Maria fez uma feijoada. Vem cá, Lourdes. Vem ver também.
Ela não deu atenção e foi tomar banho. Ivo levou as crianças para o quarto e sobre o piso vermelho derramou o pozinho que havia trazido da casa do irmão em um pedaço de papel de saco de cimento. A substância veio dentro do bolso da bermuda, dessas bem estampadas que se usavam no fim da década de 1980. O pai apagou a luz. As pedrinhas brilhavam, brilhavam...
Quando saiu do banho, já de camisola, dona Lourdes se deparou com a filha comendo o ovo com as mãos sujas daquele pó azul.
- Leide, não pode comer com a mão suja. Vem cá, minha filha. Vamos lavar a mão.
Tirou a menina que estava sentada na mesa redonda de fórmica e levou para o banheiro. Leide não quis comer mais, deixou de lado o caldo de feijão. Sentaram todos na sala para ver TV. A caçulinha, cujo nome foi escolhido pelo tio Devair, porque ela nasceu um dia depois do casamento da princesa Diana (Lady Di) com o príncipe Charles, em 1981, adormeceu no colo da mãe. Lourdes colocou-a no berço de ferro de telinha rosa – sim, apesar da idade, ela ainda dormia no berço. Voltou a ver a novela das oito, O Outro, cuja estrela principal era o ator Francisco Cuoco. Ouviu um barulho vindo do quarto das crianças. Parecia engasgado, tosse. Foi ver o que era. O colchão de Leide estava molhado. De vômito.
(Continua...)
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