Sobreviventes do césio 137 - Ferida na Alma - I Parte

Depois do livro e durante a pós-graduação em Jornalismo Literário, concluída em 2009, resolvi fazer uma nova reportagem sobre as vítimas do acidente com o césio 137. Desta vez, escolhi 3 personagens centrais para dissecar o episódio que marcou a história de Goiânia. Agora, deliberadamente ciente das técnicas narrativas que poderia usar, amparada nos recursos e princípios do JL, e tendo como norte “Hiroshima”, de John Hersey – obra que ainda não conhecia quando da produção de “Sobreviventes do Césio”. Decidi ir mais fundo, ousar mais, aprimorar o trabalho...

Pois bem: a grande-reportagem que vocês passam a conferir a partir de hoje, 17 de julho, foi escrita em dezembro de 2008 (um ano após o lançamento do livro), está dividida em três tempos – presente, passado e presente – e será publicada em partes – até para não cansar você, leitor. Ao final, divulgo também um making of contendo particularidades da produção e detalhando os recursos de JL utilizados. Espero que gostem do resultado!

Sobreviventes do Césio 137

FERIDA NA ALMA

Crédito: Demian Duarte
Lourdes das Neves Ferreira

Na casa que há um ano (2007) evocava fortemente lembranças de um período turbulento na vida de Lourdes das Neves Ferreira, 56, mudanças recentes na sala de estar tentam velar um passado que não se dissipa, não se esvai. Fotos guardadas, reorganizadas, trocadas de lugar. Mas as memórias permanecem. E machucam. “Esquecer, esquecer não tem como. Por isso procuro sempre manter a mente ocupada”, revela a senhora que há 20 anos mora no Setor Cidade Satélite São Luiz, em Aparecida de Goiânia, município da Região Metropolitana. Hoje, sozinha. Sem o marido, sem uma das filhas e sem esperanças de uma vida melhor. Esperanças que faziam parte de sua rotina em 1987, quando vivia com toda a família na Rua 6, do Bairro Norte Ferroviário, em Goiânia. O lar foi derrubado por um minúsculo pó azul. Uma sobrevivente. Do maior acidente radioativo ocorrido em uma área urbana no mundo. Sobrevivente do césio 137.

Dona Lourdes é a mãe da menina que virou vítima-símbolo da tragédia, a pequena Leide das Neves, morta em 23 de outubro de 87, com apenas 6 anos, pelos efeitos da radiação. Tem outros dois filhos, Lucélia, 37, e Lucimar, 35, que, agora adultos, têm sua própria família – ou tentam ter. O marido, Ivo Alves Ferreira, morreu em 2003, de insuficiência respiratória. Foi ele quem levou o pó do césio para casa, após uma visita ao irmão Devair Alves Ferreira, que havia comprado uma peça de chumbo há poucos dias. Não sabia Di, como era conhecido Devair, que o objeto era parte de um aparelho utilizado para tratamento de câncer, no qual estava acoplada uma cápsula da substância radioativa. Muito menos suspeitava que o artefato tinha sido retirado de uma clínica desativada no Centro de Goiânia, o antigo Instituto Goiano de Radioterapia (IGR), hoje o prédio do Centro de Convenções da capital. E também não imaginava que existia um órgão federal chamado Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen), responsável pela fiscalização de material radioativo no País, mas que não supervisionava o local há cerca de dez anos.



“A gente nunca tinha ouvido falar em césio, radiação, essas coisas”, pontua dona Lourdes, voz serena, boca fina, olhos grandes castanhos. Que não viram graça no brilho da luz azul. Mas que temem, tremem, se é que possível, ao avistar um depósito de ferro-velho. Como o que seu cunhado Devair tinha na Rua 26-A, Setor Aeroporto. Como o que seu marido comandava no lote em que moravam no Norte Ferroviário. Como o que existe, ironicamente, ao lado de sua atual casa. Do qual ela diz ter medo. Passado inconveniente. E que ainda insiste em ser presente.

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Ele já tentou abrir uma confecção. Um bar. Uma frutaria. Mas nada deu certo na vida profissional de Odesson Alves Ferreira, 53, nas últimas duas décadas. E olha que o ponto era bom – Rua Silva Bueno, Jardim Nova Era, Aparecida de Goiânia. O tamanho era bom – uma sala de aproximadamente 42 metros quadrados. E os clientes... Bem, estes não apareciam. “A ignorância do ser humano não me deixou trabalhar, não me deixou progredir”, desabafa Odesson, 1,72 de altura, 103 quilos, e um peso enorme nas costas. Sobrevivente do césio 137, ele vê o preconceito esmagar suas possibilidades de reinventar o presente e de planejar o futuro. O passado o arrasta. “As pessoas me tornaram um parasita”, arremata.

A discriminação na vida de Odesson - Adelson para os íntimos e familiares – é uma raiz que começou a brotar pouco depois de setembro de 1987, quando ele se tornou personagem da tragédia radioativa em Goiânia. “Até hoje as pessoas me olham desconfiadas, achando que eu posso passar radiação”, comenta ele. “Vivi duas vidas em uma. Os amigos não são mais os mesmos, nem os parentes – muitos morreram depois do desastre e outros se afastaram”, continua o senhor moreno, de fala pausada e articulada.

A pior lembrança que ele guarda de todo o episódio está ligada à fase da internação hospitalar. Sem informação, sem certezas, sem carinho. Um dos constrangimentos que não sai da cabeça de Adelson diz respeito à visita do então presidente da República José Sarney (hoje senador pelo PMDB do Amapá), ao Hospital Geral do Inamps – hoje Hospital Geral de Goiânia (HGG) -, no dia 14 de outubro de 1987. “Há aproximadamente um mês não limpavam a ala do hospital em que estávamos. Naquele dia, lavaram tudo e nos colocaram no fundo do quarto. A comitiva, toda paramentada com roupas especiais, máscaras e luvas, passava olhando pra gente com cara de espanto, pena, medo. Era como se fôssemos animais.”

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Wagner Mota Pereira, 40, não era catador de papel. Nunca foi. Mas da história oficial não se foge. Até hoje ele é conhecido como um dos catadores que encontrou uma bomba de césio abandonada num terreno baldio em Goiânia. Na época do acidente, setembro de 1987, tentava se consolidar como motorista da antiga Casa do Colegial. “Olha aqui a minha carteira”, aponta o homem de rosto cumprido e cabelos pretos, enquanto lista outros empregos que já teve: engraxate, entregador de salgado, funcionário de uma cantina, de uma loja de autopeças. Nada que indique que o então jovem de 19 anos flanava pelas ruas de Goiânia.

Da capital, entretanto, ele fez questão de minar as lembranças. Atualmente vive sozinho no Bairro Maracanã, em Anápolis, cidade localizada a 55 quilômetros de Goiânia. O casamento com a primeira esposa foi desfeito em 1998 – a união havia sido selada alguns meses antes do acidente com o césio 137. Sobre os motivos da separação, ele se desvencilha. Não comenta. Prefere também omitir o nome da ex-companheira. “Pode ficar chato pra ela, né”, diz, dando mostras de que ainda é forte o preconceito para quem estabeleceu ou estabelece laços com os radioacidentados. Mas existem as exceções – e um anel dourado na mão direita dele deixa isso claro. “Estou noivo há dois anos”, informa.

A vida de Wagner começava a ser revivida – ou sobrevivida – existiria este termo? – no dia 4 de dezembro de 1987. Ele conseguiu escapar da morte. A história oficial também registrou o fato:

Rio – No boletim médico distribuído ontem pela manhã, os médicos do hospital informaram apenas que um dos pacientes, Wagner Mota Pereira, ainda necessita de cuidados médicos. No entanto, ele não precisa mais ser submetido a atendimento especializado, podendo continuar seu tratamento no Hospital Geral do Inamps, em Goiânia. O documento da Marinha dizia ainda que o paciente está com seu quadro clínico mantido e o hematológico sem alterações em relação aos últimos dias “

Brasília
Correio do Brasil, 04/12/1987

No dia 10 de dezembro de 1987, pousava no aeroporto Santa Genoveva, em Goiânia, o avião da Força Aérea Brasileira (FAB) trazendo os últimos pacientes internados no Hospital Marcílio Dias, para onde haviam sido transferidas as vítimas mais graves do acidente com o césio 137. Geraldo Guilherme da Silva, Edson Fabiano e Wagner Pereira chegaram por volta das 13h30. Das 14 pessoas internadas na unidade carioca, quatro não retornaram com vida à capital goiana: Maria Gabriela Ferreira, 37; Leide das Neves Ferreira, 6; Israel Batista dos Santos, 22; e Admilson Alves de Souza, 18 – os dois últimos, funcionários do ferro velho de Devair.

Em solo goiano, Wagner, vestido com um pijama de hospital na cor verde, desabafava:

- Saí da morte, né. Tava morto, tô vivo graças a Deus. Eu só tenho que agradecer aos médicos lá, a gente foi bem tratado, bem cuidado. Tô de volta, pisando no chão da minha terra.

O olhar do jovem se voltou para baixo, para a pista do aeroporto. Ele continuou, após intervenção de um repórter:

- Acreditei além de tudo em Deus. Se não fosse ele... Ele é o médico dos médicos.

A fé de Wagner, como ele próprio afirma, começou a ser testada exatamente há duas décadas, poucos dias antes do maior acidente radiológico do planeta.

(Continua...)

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Parabéns por essa reportagem de tanta relevância, abstração e embasamento. Espero ansioso pelos próximos capítulos.